...E me
lembro de quando eu era criança e os excertos do meu mundo eram peças de um
quebra-cabeça, muito menos fragmentado do que hoje a falarem comigo: a minha
avó, sentava-se na cadeira de balanço sem nunca se balançar e desenrolava os
fios emaranhados de um novelo, negro, negro e negro e tecia, aquém do casaco de
lã que ninguém nunca iria usar; histórias fantásticas, de seres fantásticos, de
mundos fantásticos. Mundos de onde, nunca estive. Mundos de onde, nunca, pude
sair. Mundos que não eram o meu, eu bem o sabia. Mundos que eram meus, e eu não
sabia...
E eu nunca
soube. De onde vinham esses mundos e os seres desses mundos. Pareciam brotar misteriosamente
das páginas do livro negro, negro e negro, que nunca pousava no colo da minha
avó, pois este deveria sempre conter o novelo de lã, igualmente negro, que
tecia o casaco que jamais, ninguém usaria...
E me lembro
que a minha avó, estava quase que completamente cega, e os pontos rebentavam de
suas mãos nodosas e frouxas, frágeis e assimétricos, no exato instante em que
os seres, e os mundos daqueles seres, chegavam-me assim mesmo; como pequenos
pontos, vazados e negros e frágeis e assimétricos, aos ouvidos.
Acredito eu,
que da mesma forma, saltaram também aos olhos da minha avó, quando esta
manuseava o livro negro, negro e negro, que nunca esteve na estante, que também
não podia conter o livro, que estava dentro da cabeça dela. Eu sei, porque este
livro estava também dentro da minha cabeça, até um pouco antes da maré encher e
encher e afogar-me, num céu negro, negro e negro, como os olhos que me
espreitam das páginas; vindos de futuros há muito perdidos e de passados que
nunca aconteceram... olhos sem luas e sem estrelas... o livro estava dentro da
minha cabeça até o instante que precedeu a minha morte e que me pareceu um céu
infinito de eternidades, mas era só o instante, que precedeu a minha morte...
negro, negro e negro, e eu estou morto, e não sei onde estão seus olhos que
eram o céu, não por serem azuis, mas porque dava vontade de me assentar dentro
deles, de me esconder dentro deles, de me falecer, dentro deles, porque eles
eram o céu de noite, de noite sem luas e sem estrelas... Negro negro e negro e
eu estou morto e não sei onde estão os seres, e onde fica o mundo dos seres. O
mundo que passei a vida inteira enredando, mesmo depois de estar, completamente
cego... Em noites sem luas e sem estrelas, debruçado sobre o livro negro, negro
e negro... da mesma forma como quando a minha avó terminava as histórias, eu me
debruçava sobre um céu de jabuticabas que parecia o infinito, negro, negro e
negro e passeava pelas horas sozinho, saboreando os seres e os mundos daqueles
seres... e me lembro que o tempo era o infinito, e que se arrastava desapressado,
no exato instante em que se acabava. Negro, negro e negro, e eu estou morto, e
não sei onde está o mundo, o mundo que passei a vida inteira tecendo, dentro da
minha cabeça, com o mesmo fio negro, negro e negro, que neste exato instante,
um outro homem, senão eu, está tecendo. Num quarto de noite, sem luas e sem
estrelas, debruçado sobre o livro, enredando a vida, fio a fio, com o mesmo
fio, frágil e assimétrico do casaco de lã, negro e espesso que ninguém nunca,
jamais, iria usar.